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A PERSONAGEM QUE FALTAVA
17 de  fevereiro de 2016 | Autor : 2 | Fonte : 2

Viriato Moura

Criava personagens ao sabor de qualquer insinuação. Retirava-os do caldeirão de vidas que fumegava na cozinha de sua própria família. As rodas de papos amenos eram transformadas, sem qualquer cerimônia, em plateias compulsórias dos dramas densos vividos por seus parentes e aderentes, sempre personagens principais de mirabolantes enredos, que viravam espetáculos verbalizados com a compulsão sem vírgulas de quem tem um repertório sem fim.
Valdete, a contadora de casos circunscritos à sua realidade doméstica, não abria mão do parentesco com seu elenco. Bastava que alguém sugerisse um assunto, contasse algo real ou imaginário, lembrasse de um filme visto ou coisa assim, que , de pronto, Valdete apresentava seu personagem familiar e seu enredo. No máximo, em dias de pouca inspiração, permitia-se introduzir no contexto, sempre como coadjuvante, um amigo mais íntimo.

Marilda, uma advogada de meia idade, numa conversa com Valdete e amigos, desabafa sobre seu casamento terminado havia poucas semanas. Nem concluiu seu relato, foi interrompida pela ansiosa ouvinte, que logo começou a narrativa do desenlace de seus pais. Repleto de lances sensacionais, como é de seu gosto, o caso roubou a cena da interlocutora: violências sofridas pela mãe durante os quase vinte anos de convivência com seu pai; amantes do genitor, devidamente ofendidas e esbofeteadas em público por ela e suas endiabradas irmãs. Quando o assunto era assalto, dizia que na casa de um tio seu houve um em que ele, sozinho, imobilizou os dois meliantes e, com um tiro certeiro, desarmou um terceiro, que dava cobertura aos outros. Fora as prisões espetaculares de famosos malfeitores feitas por seu irmão policial, que viravam manchetes de primeira página nos jornais locais.

Alfredinho, um dos amigos de Valdete desde os tempos de estudante no Colégio Carmela Dutra, tradicional estabelecimento de ensino de Porto Velho, intrigado pelo fato de ouvi-la contar tantos dramas e peripécias de seus familiares, procurou empreender uma sutil investigação para saber até que ponto eram verídicas as histórias relatadas por ela. Em cada investida, era surpreendido pela constatação dessa veracidade. Tudo que Valdete contara até então – ele pôde comprovar – era pura verdade. Os parentes existiam de fato e os fatos aconteceram. Muitos deles estão registrados na imprensa, como é caso das ações heroicas de seu irmão policial. Tudo verdade.

Na noite em que Valdete festejava o aniversário de seu filho mais novo, também personagem contumaz de seus relatos reais, o tema na mesa que frequentava era suicídio. Um dos convidados relembrou um caso recente que consternou a cidade. Valdete, de súbito, foi tomada de uma realidade nunca antes vivenciada. Entre os seus não havia caso de suicídio. Nem sequer tentativa. Estática e muda, pela primeira vez, desde que começou a contar histórias de seus familiares, não dispunha de um personagem pronto para entrar em cena. Em silêncio, deixou o ambiente festivo e recolheu-se a seu quarto de dormir. Minutos após, ouviu-se um estampido seco. Assustados, todos os presentes na festa correram para o local de onde veio o som. No chão, esvaindo-se de sangue, a cabeça de Valdete deixava sair seus últimos instantes de vida. Ali jazia a personagem que faltava...

Viriato Moura
Médico, jornalista, artista visual, idealizador e apresentador do programa de televisão Viva Porto Velho, colaborador de diversos sites a nível local e nacional.
 

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