Hugo Evangelista da Silva*
A história tantas vezes dita pelos compositores do genial “Samba de Orly” dando conta da participação do, também genial, poeta Vinicius de Moraes na composição dessa obra-prima é de toda singular. Conto-lhes: O encontro que incluiu o poeta na autoria da composição aconteceu quando o samba já estava pronto. Assim, apresentaram-lhe a letra da música e com ela o pedido de que ele – Vinicius – acrescentasse ali mais algum verso. O “poetinha” tomou do papel, leu os versos já escritos, e em seguida propôs a substituição do verso que dizia: “Pede perdão pela duração dessa temporada ... “ sugerindo ao seu lugar o verso que acabara de compor: “Pede perdão pela omissão um tanto forçada ... “ ao que os compositores – Chico e Toquinho – aquiesceram. Refeita a letra, encaminharam o samba ao crivo do censor de plantão, conquanto estivéssemos em tempos de exceção, que ao ler seus versos decidiu-se por “censurar” justamente a frase substituta do poeta, voltando o samba ao status quo anterior. Detalhe: A participação de Vinicius na composição do samba, entretanto, restou mantida por seus colegas!
Guardadas as devidas proporções, ouso dizer que a mim aconteceu algo similar!
Digo-lhes: Faz algum tempo, ocorreu-me encontrar num fim de tarde um dos mais produtivos sambistas do bairro – Santa Bárbara – que por seus reconhecidos méritos, integra em posição privilegiada a ala de compositores de nossa Escola – minha queridíssima ASFALTÃO – e transita com inigualável desenvoltura em meio as demais co-irmãs de nossa cidade, sendo, por isso, convidado ocasionalmente a compor seus sambas de enredo. Nos momentos de folga, nosso sambista, instala-se na acolhedora calçada do “bar do CALIXTO”, onde possui cadeira cativa, e, aproveitando-se do frescor da brisa soprada morro acima a partir do nosso rio madeira, entre uma prosa e outra ou um gole e outro, encontra a inspiração que lhe falte à composição de seus sambas. Refiro-me ao singular Mávilo Melo!
Naquele encontro, cumpridas as formalidades que recomendam sua boa educação, convidou-me a sentar-me à mesa e mostrou-me a sinopse que lhe fora passada por uma Escola de Samba com o pedido de que ele compusesse o samba de enredo que, naquele ano, haveria de embalar o desfile da Escola na “avenida”. Li o documento em rápidas vistas e ao concluir a leitura, perguntei-lhe: “Vais fazer o samba?” Ele respondeu-me: “Está quase pronto!” Em seguida, tomou de alguns papeis que, em tintas ainda frescas, guardavam os versos que ditariam o samba encomendado, e pediu-me: “Faça suas considerações!”
Confesso: Fui tomado de grande surpresa, eis que jamais tivesse vislumbrado em mim quaisquer atributos de sambista e, já estava a ponto de recusar a empreitada, quando então meu dileto compositor, do alto de sua apurada sensibilidade e arguta perspicácia, observou: “Por favor, não me evites o pedido! Sei que vc tem conhecimentos de causa para agregar mais qualidades a este samba!”. Aquiesci e iniciei, então, uma re-leitura da sinopse, para, em seguida, ocupar-me com mais vagar dos versos do samba. Concluídas as tarefas, fiz alguns comentários e sugeri a inclusão de mais algumas linhas a fim de dar o merecido destaque a alguns de nossos deliciosos pratos típicos – o enredo da Escola ocupava-se do centenário de nosso município – ao que o sambista, anuindo às minhas considerações, as anotou com o devido cuidado.
Passaram-se mais alguns dias e, em outro fim de tarde – avistei – lá estava o compositor na mesma calçada do “bar do Calixto”, ocupando a mesma mesa, rabiscando – quem sabe? – mais alguns versos que moldariam o seu próximo samba. Quando, ao avistar-me, sinalizou a mim para que me aproximasse, e assim o fiz. Conversamos trivialidades e, de repente, mostrando-me uma folha de papel, disse-me: “Aqui está o nosso samba! Veja se agora está do seu agrado!” Essa a maior surpresa! Questionei aquele “nosso” porquanto não divisasse razões para pegar carona no primoroso trabalho do sambista à conta de singelos comentários, feitos mais em razão da admiração e do apreço que devoto ao nobre amigo do que pelas eventuais qualidades de compositor, que reconheço não as possuir. O sambista, a justificar sua atitude, falou-me àquele instante da história que envolve os compositores do “samba do avião”, a qual já a conhecia. E, assim, convenceu-me mais uma vez a envolver-me em seu samba e, eu, por absoluta generosidade do compositor, acabei por tornar-me “sambista de um samba só”!
É possível que em outras oportunidades atreva-me eu novamente a “viajar” como o Mávilo Melo, a seu convite, na composição de outros sambas. E, embora sendo certo que a comunidade não ganhe, com a minha participação, um grande letrista, resta-me, contudo, uma indiscutível certeza: “Ganhei eu um parceiro de peso”. Literalmente!
* Advogado, escritor e memorialista, conta histórias que viu ou ouviu sobre nosso estado, nossa cidade e do bairro em que nasceu e reside: o Santa Bárbara. e-mail:
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