Notícias 
RECOMEÇO
1 de  outubro de 2024 |
Autor : Sandra Castiel | Fonte : Sandra Castiel
Na véspera de seu aniversário, enquanto regava as plantas na varanda do apartamento, o marido se aproximou:
— Anna, decidi vender os móveis da sala de jantar, passei no antiquário, ele virá aqui pra avaliar a mobília e o relógio de pé; devem valer um bom dinheiro. — Disse Sérgio.
— Você não precisa fazer isso, Sérgio — falou Anna, enquanto pingava gotas de adubo nos vasinhos de violetas.
—Como não preciso? Você nunca gostou dessa mobília, passou anos reclamando dela… — disse Sérgio. — Agora poderá comprar móveis modernos, a seu gosto, será seu presente de aniversário, seu presente de 50 anos.
— Deixe tudo como está, Sérgio, eu não me importo — respondeu Anna, antes de sair da varanda e caminhar em direção à cozinha.
Mais tarde, ao entrar no quarto onde dormia, sozinha, sentou-se diante do espelho antiquado e contemplou seu olhar cansado, as rugas em volta dos olhos claros, e seus cabelos loiros desbotados: reparou que os fios grisalhos se misturaram aos loiros que ainda restavam e como pequenas luzes destacavam-se na mecha que lhe caía sobre a testa.
—Meus cabelos foram tão bonitos…— pensou. — Lembrou-se-se da própria juventude, da mocidade, do arsenal de maquiagem compartilhado com as irmãs em noites festivas, do burburinho das trocas de roupa em frente ao espelho modesto da casa dos pais.
Lembrou- se das paqueras nas festas, da proximidade do corpo masculino enquanto dançavam juntinhos, da perna dele roçando em sua coxa, ao som de um bolero, dos arrepios, dos beijos, do frenesi…
Pensou sobre o tempo e sobre a família que constituiu com Sérgio: dois filhos jovens-adultos, ambos dedicados à construção de suas carreiras; estabilidade financeira — crédito para suas despesas pessoais e da casa.
Apesar disso, sentia-se vazia, sozinha, sem propósitos…
Às vezes achava-se culpada por este vazio que carregava consigo, pelo desamor, por querer estar longe dali. — Se não fosse sua arte com os pincéis e as tintas (apesar do deboche do marido sobre seus quadros), como preencheria a vida, ao longo desses anos? — Pensou. — Vazio de respeito, de cumplicidade, de momentos de paixão, coisas assim… — Por que cedera à insistência de Sérgio e abandonara seu curso de Arte? Os filhos já estavam crescidos…
Levanta-se, abre a janela e olha para o horizonte: um vento suave com cheiro de mar invade o quarto e brinca com seus cabelos loiros.
Ocorre-lhe a ideia de conversar com o filho mais velho, desabafar sobre seus sentimentos, suas frustrações e sobretudo sobre sobre sua vida sem propósito— pensa Anna, enquanto faz a chamada. — Ouve a voz do filho:
—Oi, mãe!
—Mateus, saudades de você, meu filho…
—Tudo bem, por aí?
—Não. Não estou bem.
—Algum problema de saúde com você ou com o pai?
—Não, Mateus, nada disso. Podemos nos encontrar, para conversar, fora daqui, amanhã?
— Mãe, ando superocupado com a mudança pro escritório novo; o pai tem uma carteira de clientes incrível! Agora que o João vai começar a advogar também, seremos três advogados… vamos ter muito mais clientes e trabalho—disse Mateus, entusiasmado. — Vou dar um jeito de ligar pra você, amanhã, aí a gente marca, ok? Beijo, mãe, te amo.
Desliga o telefone. Por uns instantes, ouve o silêncio. Apesar do calmante noturno, Anna demora a adormecer.
Àquela madrugada, durante o sono, um ruído forte no interior do ouvido direito desperta-lhe a consciência; letárgica, tenta abrir os olhos para compreender o que estava acontecendo: não consegue abri-los. E o ruído, semelhante ao do relógio da sala de jantar, torna-se ensurdecedor. Tenta levar a mão direita ao ouvido… em vão; tenta gritar, pedir ajuda ao marido no quarto ao lado, mas não consegue emitir som algum; falta-lhe o ar, sente o coração acelerado, enquanto seu corpo está paralisado: tem alucinações, vê imagens distorcidas do seu rosto sobre as telas
que pinta, vê seus olhos, opacos, dois borrões negros a contemplar folhas secas e violetas mortas.
Quando amanhece, Anna já está de pé: retira do armário uma pequena mala, onde cabem algumas roupas, seus pincéis, suas tintas, e deixa o apartamento.
Sem olhar pra trás, parte em busca de um recomeço.
Sandra Castiel
[email protected]
ACLER - Academia de Letras de Rondônia
Seja bem vindo ao nosso site
Desenvolvimento: Portalrondonia.com